Fim de tarde. O sol começa a pintar tudo de laranja.
Brincando com algumas nuvens, a luz ganha novas tonalidades misturadas com a
poluição urbana, os diversos tipos de revestimentos nos prédios e montanhas
caprichosamente postas na frente do poente, assusta e encanta aquele que tem
curiosidade em perguntar o motivo de tantas variações.
O trem cheio de pessoas cansadas, marcava o final de mais
um dia de trabalho na cidade. Homens e mulheres voltando para suas casas ou
tomando outros destinos. A rotina os fez acostumarem-se com a falta de espaço e
privacidade que três pessoas por metro quadrado fornecem. Fones de ouvido,
telefones, terços, livros ou qualquer outro tipo de dispositivo eram agora os
novos refúgios daqueles estranhos que tinham tanto em comum.
Lembro-me quando os vi sentados. Ela próxima à janela, de costas para o
sentido do trem e ele de frente para o corredor. A luz alaranjada que
entrava, fazia seu cabelo cor de cobre mais laranja do que já o era. Seus
óculos de lente marrom até disfarçavam para os demais, mas eu podia ver seus
olhos cor de lilás por trás deles. Aquela mulher fora tocada. O senhor negro, de
cabelo curto e barba por fazer não passava de um mero coitado que estava sendo
ajudado. Cego, de bengalas e óculos escuros de formato esportivo, em total
desarranjo para um homem de meia idade e terno.
Sabia que não poderia registrar aquele momento. Não sabia
qual era o alinhamento desta pessoa frente as diretrizes do governo. Fossem
boas ou ruins, estaria colocando-a em perigo ou todos a minha volta. Seria
irresponsabilidade provocar um tigre estando dentro da sua jaula. Talvez ela só
estivesse fazendo um ato de caridade neste mundo feroz.
A viajem seguia tranquila, o trem balançava como de costume.
Seus habitantes temporários, já acostumados com as oscilações, seguiam suas
rotinas de leitura, filmes ou conversas particulares. Nossa visitante não
conhecia bem a rotina. A cada parada a espera de sinalização ela ficava mais agitada.
Tudo se acostuma. Quando subitamente perdemos velocidade em uma estação bem
sinalizada. Comecei a ser contagiado pela agitação da criatura de olhos lilás
quando as luzes apagaram-se, a vibração do motor não poderia mais ser sentida e
o ar-condicionado parara de funcionar. Um problema normal, mas não neste contexto.
Alguns minutos parados e todos começaram a reclamar,
apertar o botão de emergência para tirar satisfação com o maquinista. Outros que
já trabalhavam para abrir as portas. Desciam e ajudavam os demais na mesma
tarefa, não estávamos tão distantes assim da estação, o ar quente e úmido era
muito incômodo para ignorar a falta de ventilação. Entretanto a mulher já não
conseguia se controlar. Respirando alto, pernas agitadas e o semblante
preocupado não faziam jus ao que aconteceria.
Pude ver de longe linhas luminosas se aproximando. Ao
tocarem o trem por fora, pude sentir a lataria ressoando em forma de metal
sendo perfurado. Os gritos vindos dos outros vagões não davam tempo para os
demais reagir, só a mulher, que postando-se de pé gritou com raiva quase animal:
-
NÃO! ABAIXEM-SE! AGORA! – enquanto estendia as duas mãos na direção da janela
em que eu estava.
As poderosas balas simplesmente nos ignoraram. Uma
surpreendente bolha de proteção nos cercava. Os que estavam fora dela tentavam
de achegar para perto ou escorregavam para fora do vagão. O esforço conjunto de
alguns homens ao abrir as portas
instantes antes do ataque deu a muitos a chance sobreviver ou permanecer
protegidos atrás da grossa lataria.
Assim que os tiros passaram, ainda era possível ouvir os
gritos, choro de desespero e homens gritando com outros. O grotesco cenário
dentro do vagão justificava tais atitudes. Vidros quebrados, paredes
perfuradas, sangue até no teto e diversos corpos despedaçados preenchiam o chão
preto emborrachado. Foi um massacre.
Só percebi que ainda estava agarrado na barra de apoio do
trem quando o cego de pé tirou os óculos, virou-se para mim com olhos de um
lilás fluorescente e falou diretamente comigo.
-
Rápido, pense numa rota de fuga! – encostou a mão na minha testa e então tudo
ficou escuro. Eu fui tocado.
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