Nunca me incomodei com a escuridão. Para falar a verdade, sempre que
acaba a luz eu voltava à reflexão sobre a perda do convívio devido ao conforto
que a eletricidade nos trazia.
Naquela noite de sábado, todos estavam em casa. Final de ano, férias escolares,
folga no trabalho. Resultado: três gerações reunidas, de uma família
tipicamente grade – grande não gigante.
Se não me engano, como em um evento cotidiano, a luz acabou. As
crianças davam seus gritinhos curtos e agudos, enquanto alguns adultos davam um
muxoxo ou soltavam palavrões por terem suas atividades encerradas abruptamente.
Eu estava no terraço lendo. Aproveitando a fresca brisa monótona que
dezembro dá aos que vivem numa fornalha como eu. Depois de duas horas, violões,
gaitas e panderolas foram sacadas e assim, em meio a velas e a luz da Lua,
todos cantavam, bebiam e contavam histórias engraçadas que envolviam os outros
parentes. Estava entretido demais na leitura e ainda podia ouvir toda a bagunça
descontraída que acontecia nos fundos da casa.
Alguns disseram que foi sorte, mas foi no detalhe de um pequeno
silêncio que pude notar. De longe, eu podia ver. Caminhavam vagarosamente,
preenchendo parte da rua. Uma legião silenciosa, despretensiosa como a maré que
avança sobre casas e calçadas. Logo, o inferno começou, lembrando o abraço
mortal de uma jibóia.
O grito de dor dos que eram atacados pelas mãos frias, de pegada firme
e as mordidas titânicas determinadas, só eram superados pelo dos parentes
desesperados frente ao choque do ataque inesperado e ao pulsar do sangue. Em
instantes, as casas que estavam com portões abertos começam a ser invadidas.
Móveis e talheres caindo, copos, janelas se quebrando e mais gritos, o horror
começava a mostrar sua face para mim.
Demorei um pouco para notar que as vozes e cantoria haviam cessado.
Tive a impressão de que o ar começava a pesar devido a eminência de uma ameaça
que logo estaria no nosso quintal.
Dois tios meus se encaminhavam até o portão quando de um salto larguei
tudo para contê-los.
- Não! Estão
invadindo as casas! – disse em tom de urgência, mas sem elevar a voz.
- Quem meu
filho? Está tendo briga na rua isso sim! – falou meu tio mais velho,
mostrando-se preocupado com o bem estar dos vizinhos de longa data.
- Não sei, mas
lá de cima eu estava vedo... porra, me ajuda a empurrar o carro, precisamos
bloquear esse portão! -já estava me
sentindo muito agitado, sabia que a qualquer hora a turba estaria na nossa
porta, literalmente.
Quando o portão de pedestre foi aberto de forma abrupta e um vulto de
atitude enérgica e apressada se encaminhava em nossa direção. Meus músculos se
contraíram, estava disposto a conter com toda a força possível aquele invasor.
Ao concentrar um potente chute na altura do abdômen a fim de afastar,
identificar e conter o vulto ouvi uma voz familiar resfolegante, a qual tinha
noção de que o tempo urgia para se dar a este tipo de luxo.
- Viado,
tranca tudo! – falou meu primo Fernando.
- Me ajuda a
empurrar a pickup! – falei com firmeza e urgência, já entrando no carro para
puxar o freio de mão.
- Calmai, o
que ta acontecendo? – disse meu tio mais velho que tentara segurar o braço do
seu filho.
- Pai, ajuda
aqui caralio! – respondeu o jovem sem fôlego, suado, juntando forças para
ajudar a empurrar o carro.
- Vocês estão
de saca...- quando ouvimos passos apressados descendo a escada. Era meu tio
mais novo que agora compartilhava da mesma preocupação que eu e meu primo.
- Puta que
pariu Luiz, ajuda é sério! – correu o homem de estatura mediava, rosto sem
barba e expressão naturalmente determinada para frente do carro.
Ainda desnorteado com aquele
turbilhão de sons e atitudes enérgicas, o homem alto, magro, conservado dentro
dos seus 50 anos, vendo o esforço coletivo, e claro, sentindo em seu cerne que
não se tratava mais de uma brincadeira, levantou rapidamente as mangas da
camisa para ajudar os três. Em segundos o SUV prateado estava encostado
cirurgicamente no pesado e praticamente intransponível portão de madeira.
A casa estava selada.
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