Tiros. Muitos
tiros. O que está acontecendo?
Abro meus olhos e logo percebo.
O que aconteceu ontem não era um sonho. Estava no escuro e quente porão da
minha casa com meus netos, esposa, filhos e noras. A luz que entrava era por
duas janelas retangulares que ficavam num ponto mais alto do cômodo a fim de
aproveitar a luz natural.
Levanto-me e já sinto que minha
coluna dói um pouco. Dormi de qualquer jeito em um colchão improvisado. Não sou
mais um garoto. Vejo um dos meus filhos sentado na escada olhando o telefone e
seu semblante não é nada reconfortante. Provavelmente nem dormiu esta noite.
Para falar a verdade, acho que poucos ficaram acordados.
- O que houve
meu filho? – perguntei quase sussurrando para não acordar ninguém enquanto me
levantava.
- Pai, as
coisas não estão boas. Parece que isso é grande e sério. Liguei para alguns
sócios e ninguém responde. Será que... – me olhou preocupado o filho mais
amoroso e esperançoso, seus olhos mostravam uma preocupação sem precedentes.
-
Provavelmente sim pai, mas não devemos perder as estribeiras. Agora é hora de
pensar na gente. – cortou Ramon o lamento do pai enquanto saia das trevas
oferecidas pelo cômodo. O jovem estava de pé, olhando para a janela – Ouviram
os tiros, mais alguém escapou.
- Acho que é
nosso dever como ser humano ver o que houve com essas pessoas. – olhei para pai
e filho que estavam acordados naquele breve momento de paz oferecido pelo sono
dos demais. – José, guarde sua bateria. Ela pode nos fazer falta se essa luz
não voltar.
Neste instante tive a impressão
de que estávamos começando a traçar dentro de cada cabeça, sem um precisar
falar com o outro, um plano de ação para superar essa crise. Quando um forte
baralho de móveis sendo arrastados no andar de cima quebrou todo o silêncio.
Acordando alguns que dormiam de leve e nos colocando em um estado de alerta
quase que paralisante. Passar despercebido era uma condição fundamental para a
nossa sobrevivência.
Meu neto se encaminhou para a
escada mas acabou sendo contido pelo seu pai. Me levantei definitivamente, não
tinha motivos para continuar sentado visto o inferno que poderia começar a
qualquer instante. Havia muito a ser perdido além da minha casa e da minha
vida.
- Você não vai
sair! Eu estou te proibindo! – disse José segurando o filho pelo braço.
- Sinto muito
pai, mas isso não cabe ao senhor. – deu um puxão no pai enquanto ganhava os
degraus da escada.
- O que você
vai fazer? Não sabe o que está lá fora! – respondeu o pai com um argumento que
o faria parar caminhada.
- Seja lá o
que for, vou fazer parar de fazer barulho. Antes de descer eu coloquei
barreiras nas portas. Talvez seja alguém precisando de ajuda. – colocou a mão
nos ombros do pai que já estava uma cabeça mais baixo devido a diferença dos
degraus.
- Vai tomar no
cu, eu vou contigo meu neto! – subi os degraus próximos aos dois, não agüentava
mais aquela tensão e todo aquele breu.
- Pai, não! –
José já quase chorando. Era uma situação muito delicada, qualquer perda ali
poderia ser enorme para todos.
- Vamos vô, em
silêncio e com força! – abriu silenciosamente a porta do cômodo inundando
nossos olhos com uma claridade pálida que aquela manhã cinzenta nos oferecia.
Aparentemente, a casa estava do
mesmo jeito que havíamos deixado na noite anterior. Salvo algumas velas
apagadas, coisas levemente desorganizadas devido à toda movimentação das
pessoas na caminhada ao porão.
O barulho parece que vinha da
sala, dois cômodos de distancia da gente. Viramos à esquerda pegando o corredor
da cozinha. Tudo estava organizado, nada havia sido mexido. Mas o barulho
parece que crescia conforme caminhávamos em direção a sua origem. Meu coração
de velho batia forte, estava assustado, mas ainda sim determinado e seguro por
ver meu neto agindo como um caçador.
Passamos abaixados pela cozinha,
evitando qualquer contato com mesas e armários para não fazer barulho. Não era
hora de cometer erros levianos, vidas estavam em jogo. Ramon silencioso e forte
se escorou numa parede vazia. Respirou fundo, fez uma cara de desaprovação e
olhou pra mim. Tentei decifrar aquela reação quando ele me apontou para frente.
A janela estava aberta, para falar a verdade, escancarada. Ele tinha se
esquecido das delas.
Ele tomou fôlego por um instante
e olhou rapidamente para dentro do cômodo. Quando colou as costas novamente na
parede seus olhos estavam arregalados, parecia ter visto algo que não queria.
Confesso que senti muita vontade de olhar, mas sei que não seria prudente.
Esgueirando-se até um dos
armários, o jovem pegou uma faca longa que usávamos quando precisávamos cortar
carne para churrasco. Não entendi o motivo daquilo, na verdade, eu não sabia
até onde meu neto estava disposto a ir. Não seria capaz de usar uma arma contra
ninguém, muito menos tirar a vida de uma pessoa.
Olhando-me nos olhos, fez um
sinal de que era pra eu ficar parado e então entrou no cômodo. De pé,
silencioso, mas ainda sim determinado. O móvel parara de ser arrastado. Passos
pelo piso de madeira da sala e em poucos segundos comecei a ouvir o barulho de
algo sendo perfurado de forma vigorosa, alternando com o barulho de uma
respiração rápida e determinada. Não demorou muito para eu ouvir o barulho de
algo caindo sem ser amparado, precisava ver o que estava acontecendo, mas não
podia olhar. Como estaria o meu neto?
- Vô, vem cá.
Mas por favor, vem devagar – disse o rapaz com a voz que misturava alivio e
tristeza – não se assusta.
Fui vagarosamente me arrastando para
a sala. A primeira coisa que vi foi meu neto sentado no chão apoiando os braços
nos joelhos. Segurava a faca suja com algum tipo de óleo, bem como seu casaco
preto que refletia algum tipo de graxa. Ele me olhou nos olhos e virou o rosto
pra frente a fim de apontar para algo. Então contemplei a abominação que
ocorrera. Dois corpos caídos, um sobre o sofá e outro no meio da sala. O mais
próximo a mim estava com o crânio consideravelmente danificado. Tinha um olhar
vidrado, a boca aberta como quem tem uma gargalhada congelada. No meio da sala,
dentro de uma lagoa de sangue estava o segundo. Só era possível reconhecer que
aquilo lá já fora humano pela existência de braços e pernas. Não possuía mais
músculos nos membros superiores. Era uma cena deplorável.
Ficamos em silêncio por um
tempo. Aquilo era pesado demais para agir com naturalidade e afinal de contas,
nossa principal missão havia sido cumprida.
- Vô, eu vou
olhar o resto da casa e do terreno. Vamos sair daqui. Me ajuda a fechar as
janelas? – Disse quase sussurrando Ramon enquanto se levantava tentando afastar
aquela cena grotesca da cabeça.
- Sim meu
filho. Vamos resolver essa parada rápido. – fazendo força pra me levantar sem
fazer muito barulho, não tínhamos noção se mais coisas haviam entrado junto com
essas duas.
A casa já não era tão segura assim
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